Luiz Paulo Faccioli

Intimidade existencialista - Hazel Rowley

Luiz Paulo Faccioli


Imagine-se um mundo em que não existam computadores pessoais, e-mail, internet ou Google; um mundo sem celulares e onde mesmo o telefone convencional seja considerado artigo de luxo, assim como o toca-discos, que sequer conhece ainda o elepê; um mundo enfim sem a televisão. O rádio é o principal meio de comunicação em massa, mas a correspondência pessoal viaja por carta e pode levar semanas para chegar ao destino. Sem ter outras opções, as pessoas escrevem bilhetes para mandar recados, visitam-se com freqüência e sentam-se para discutir tête-à-tête. Recorrem ainda às enciclopédias e pesquisam nas bibliotecas. Para quem não sabe ou não lembra, esse mundo existiu um dia. E ele não era necessariamente menor do que este em que vivemos hoje: havia mais tempo para se ler, conversar e, sobretudo, pensar. O estudo não tinha sua importância medida apenas pelo quanto ele agrega num currículo:

“Não era uma atmosfera romântica. Os exames orais tinham a fama de ser desgastantes ao extremo. (...) O mais difícil era la grande leçon, em que os candidatos sorteavam um ponto de dentro de um chapéu e tinham cinco horas na biblioteca da Sorbonne para preparar uma aula para o terceiro grau. (...) Os exames orais eram acontecimentos públicos. Os melhores alunos, como Sartre e Beauvoir, tinham uma grande platéia.”

Saudosismos à parte, chega a dar inveja de quem viveu à época e pôde testemunhar um momento como esse. E não apenas porque os protagonistas eram Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, dois ícones do pensamento do século 20, mas porque existia tanta gente interessada em assistir a uma prova oral de quem ainda não havia conquistado uma ínfima parcela da notoriedade que viria a conhecer. A tradição da França na filosofia explica o interesse do público e, sem dúvida alguma, conduziu a trajetória dos dois. Outro considerável impulso, agora com um toque inegavelmente charmant, é o fato de eles terem formado o casal mais célebre das letras universais. Charme é o que não falta nesta história, a começar pelo cenário: Paris, seus cafés, seus artistas, sua atmosfera a um tempo fervilhante e blasé.

Sobre Sartre e Beauvoir muito se tem escrito e muito ainda se vai escrever. Em primeiro lugar, porque há menos de trinta anos os dois estavam bem vivos e causando polêmica em tudo com o que se metessem. Depois da morte de Sartre, em 1980, a vasta correspondência trocada entre eles e zelosamente guardada por ambos começou a vir à tona trazendo revelações espantosas, na medida em que elas contradiziam muitas das convicções que os dois escritores sustentavam em vida. Uma parte desses documentos já foi transformada em livro, começando por Beauvoir, que compilou ela mesma as cartas recebidas de Sartre, bem como várias das que ele escreveu a algumas de suas muitas namoradas, publicando-as em 1983. E desde sua morte, em 1986, a filha adotiva Sylvie Le Bon de Beauvoir vem se dedicando a decifrar a difícil caligrafia de Simone em toda a correspondência que ela manteve com Jean-Paul e com outras pessoas que privaram de sua intimidade, além de seus diários, visando à publicação futura. Apesar do esforço, uma grande parte ainda permanece inédita.

A inglesa Hazel Rowley estuda a vida de Sartre e Beauvoir há mais de 25 anos. Morando na Austrália no auge do movimento feminista, entre o final dos anos 60 e início dos 70, ela teve o primeiro contato com as idéias da autora de O segundo sexo, que vieram a inspirar sua tese de doutorado, “Simone de Beauvoir e a autobiografia existencialista”. Para o trabalho, Rowley chegou a entrevistar Beauvoir em 1976. Depois disso, seguiu atenta a tudo o quanto se referisse ao casal. Sobrevieram a morte de Sartre e a publicação de suas cartas. Entretanto, a história que se conhecia deu uma guinada espetacular com as revelações surgidas após a morte de Beauvoir, e foi a partir delas que Rowley concebeu Tête-à-tête, publicado nos Estados Unidos em 2005, já traduzido para várias línguas e que virou best-seller no Brasil desde o seu lançamento no ano passado. Diz a autora no prefácio do livro:

“Esta não é uma biografia de Sartre e de Beauvoir. Que outros façam justiça à sua escrita, sua política e aos detalhes intrincados de suas vidas riquíssimas. Esta é a história de uma relação. Quis retratar essas duas pessoas de perto, em seus momentos mais íntimos.”

Para concretizar seu objetivo, Rowley obviamente precisou ir fundo. A primeira providência foi mudar-se para Paris e lá permanecer por 18 meses. Com a permissão de Sylvie Le Bon, vasculhou cartas e diários ainda inéditos e tomou diversos depoimentos, dela e de outras pessoas que pertenceram ao círculo íntimo dos biografados (encontrou também alguma resistência; a mais relevante, da parte de Arlette Elkaïm Sartre, filha adotiva do filósofo e que detém os direitos sobre seu espólio literário). Consultou ainda livros, entrevistas e manuscritos depositados na Bibliothèque Nationale. Por último, cotejou minuciosamente tudo o que conseguiu apurar para refazer passo a passo a história de Sartre e Beauvoir, desde que se conheceram em 1929 até a morte dela em 1986.

Sob o peso de 462 páginas repletas de citações, transcrições e notas, Tête-à-tête é uma leitura fascinante. Ainda que às vezes lhe falte um pouco de apuro estilístico, Rowley escreve com objetividade, deixando que as “vidas riquíssimas” dos protagonistas falem por si e conduzam a narrativa. Não foi um exercício fácil. O texto estrutura-se à semelhança de um mosaico feito de pequenos recortes do material pesquisado, dispostos em ordem cronológica. Além do irresistível apelo de uma história sabidamente pontilhada de escândalos, o livro talvez tenha caído no gosto do público por dosar muito bem o rigor científico de um levantamento documental com um discurso de talhe romanesco.

A proposta de focar na relação Sartre-Beauvoir, e não em suas biografias individuais, dá de fato uma nova dimensão a uma história já velha conhecida. Mas, a despeito do ineditismo de algumas das fontes e do extenso trabalho de pesquisa, surgiram poucos fatos realmente novos. Um deles em especial tem causado certo frisson nas rodas brasileiras: quando esteve no Recife na década de 60, Sartre teria se enamorado de sua jovem intérprete e tentado seduzi-la. A jornalista e deputada Cristina Tavares, a moça em questão, já não vive para confirmar ou desmentir o caso. Verdade é que ela nunca se casou nem teve filhos e, para manter a tradição, trocou algumas cartas com seu admirador.

Sartre e Beauvoir também nunca se casaram, não geraram filhos nem viveram sob o mesmo teto. Tiveram relações sexuais nos sete primeiros anos de convivência, depois nunca mais. No entanto, o mundo sempre os viu como marido e mulher, ao tempo em que se escandalizava por saber tratar-se de um casamento aberto. Eles mantinham um pacto de contar um ao outro tudo o que lhes acontecesse, e isso incluía os relacionamentos amorosos. Como se sabe, Sartre era um notório mulherengo. Apesar da feiúra que o constrangia, ele colecionou amantes (das quais dificilmente conseguia se desligar, chegando a ter várias simultaneamente), algumas delas compartilhadas com Beauvoir (que passou a vida negando supostas aventuras homossexuais, mas elas acabaram vindo à luz através de suas próprias cartas a Sartre).

As cartas, sempre elas.

De certa forma, tornam seus autores participantes de uma espécie de reality show eterno. Os segredos que trocaram e que não se preocupavam em esconder são agora de domínio público (a televisão não teria sido mais eficiente).
Sartre e Beauvoir eram missivistas compulsivos. Como não dispunham de telefone ou e-mail, escreviam então longas cartas. E conversavam. Eles, seus amantes e amigos formavam uma família — e se referiam a esse grupo como tal. Passavam as tardes em cafés conversando, sempre em duplas, pois dessa maneira a conversa seria mais produtiva. Também nos cafés, eles escreviam. A mão, pois não existiam notebooks naquele tempo. Segundo Sartre, que nunca usou a máquina de escrever, havia uma certa sensualidade no ato de correr a caneta sobre a folha de papel.

Beauvoir também teve uma vida amorosa intensa e tumultuada. Bonita e sedutora, sua maior paixão foi o escritor norte-americano Nelson Algren, que acabou preterido na queda-de-braço com Sartre. Dando-se ouvido às más línguas, o autor de O ser e o nada talvez não resistisse mesmo à perda: dizem que era Beauvoir de fato o grande cérebro daquele relacionamento.

Tête-à-tête tem passagens saborosas. Algum tempo depois de visitar os Estados Unidos e surpreender-se com a popularização dos toca-discos, Beauvoir decide ter um. Ela e Sartre podem então ouvir Bartók e Schöenberg, dois expoentes da música erudita contemporânea, gravados em bolachões de 78 rpm, hoje o supra-sumo do antiquado.
Para terminar onde se começou, là voilà: não poderia haver melhor exemplo de que modernidade é de fato um conceito bastante relativo.

Trecho do livro:

O Hôtel Mistral, na rue de Cels, tem uma grande placa na fachada, declarando que Sartre e Beauvoir moraram lá em diversas ocasiões durante a guerra. Embaixo do nome de Sartre, há uma citação de uma carta que ele escreveu a Beauvoir: “Uma coisa não mudou e não pode mudar: não importa o que aconteça e o que eu venha a ser, virei a ser o que eu for com você.” Embaixo do nome de Beauvoir, há uma passagem de suas memórias. “Eu estava querendo iludir quando dizia que éramos uma pessoa só. Entre dois indivíduos, a harmonia nunca é um dado: precisa ser conquistada constantemente.”

A autora:

Hazel Rowley nasceu na Inglaterra em 1951, passou a infância e adolescência na Austrália e mora atualmente em Nova York. Especialista em escrever biografias, antes de Tête-à-tête já havia publicado Richard Wright:The Life and Times e Christina Stead: A Biography. Trabalha atualmente em Franklin and Eleanor Roosevelt: An Extraordinary Marriage.

Luiz Paulo Faccioli
Publicado em Rascunho, edição de julho/2007

 

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